‘Campanha Doe R$ 1’ para criar o ‘Chá do Padre’ no Rio de Janeiro
A Tenda Franciscana, que atendeu especialmente a população de rua no Centro de São Paulo nos dois anos mais fortes da pandemia, deixou o Largo São Francisco para continuar distribuindo quentinhas atrás do Convento São Francisco, no conhecido Chá do Padre. De 300 refeições que servia antes da pandemia, agora este serviço oferece, no refeitório da Rua Riachuelo, mil refeições por dia. Não muito longe, na Baixada do Glicério, o Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras) conseguiu parceria com a iniciativa privada e o poder público para montar um refeitório que hoje atende diariamente com 800 refeições (almoço, janta e café). No Rio de Janeiro, a Tenda continua ativa na rua e completou, no último dia 2 de junho, dois anos distribuindo 400 refeições por dia.
Frei José Francisco de Cássia dos Santos, diretor-presidente do Sefras, é categórico em dizer que a demanda é muito maior. Por conta disso, o Sefras está lançando no Rio de Janeiro a Campanha ‘Doe R$ 1’ para alavancar a compra de uma casa que vai abrigar o ‘Chá do Padre’ carioca e que também poderá atender até mil pessoas, ajudando a amenizar a fome que voltou a perseguir mais de 33 milhões de pessoas no Brasil, segundo dados da pesquisa Vigisan (Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil), divulgado nesta quarta-feira (8/6). Um total de 33,1 milhões de brasileiros (15,5% da população do Brasil) se encontram na situação de insegurança alimentar grave no Brasil, ou seja, passando fome, um número que quase duplicou em dois anos.
“O cenário que a gente tem hoje foi intensificado pela pandemia. Mas não é só da conta da pandemia como algumas autoridades querem, sobretudo os defensores da atual economia neoliberal”, critica Frei José, frisando que a pandemia apenas descortinou esse cenário econômico, agravando o problema. “No atual contexto, falando de pobreza e fome, o que nos toca enquanto franciscanos no Sefras de uma forma muito direta, diríamos que um grande público não era percebido em nenhuma estatística dos governantes e nem estavam na mira de nenhuma política pública. No Sefras, a gente chama – não é um nome técnico necessariamente – pessoas que viviam na economia precária. Eles não estão na estatística do desemprego porque não estão procurando emprego, eles não estão nas estatísticas da assistência social porque não recorrem aos serviços de assistência social, eles não estão na estatística do seguro-desemprego porque eles estão no emprego formal e formam um grupo de gente muito grande que perdeu a renda. Eles viviam na fronteira entre a renda, a subsistência e a miséria. É o povo que trabalha na informalidade: come à tarde o que ganhou cedo. Então, encolhendo os negócios e vindo a inflação, eles perderam a capacidade de subsistir e, rapidamente, saíram do status de pessoas empregadas e caíram na fila da fome”, explica Frei José.
Para muitos, com a fome foram parar na rua. “Na pandemia, tivemos um crescimento absurdo de até 31% da população na rua, segundo censo da Prefeitura de São Paulo. É um cenário econômico que não nos mostra um horizonte promissor e tem nos preocupado porque as nossas filas todos os dias aumentam”, avalia o diretor do Sefras.
Frei José lembra que no momento crucial da pandemia, no auge da grande campanha das autoridades sanitárias: “Fique em casa”, depararam-se com um grande questionamento: para muitas pessoas que atendemos, essa frase não vale, porque elas não têm casa! Uma grande parte que estava vindo para a rua e batendo à nossa porta, era de pessoas perdendo suas casas. Como ficar em casa?”, questiona o frade.
Foi nesse contexto que o Sefras tomou uma decisão radical: as portas dos serviços do Sefras, sempre abertas, continuariam abertas. Para muitas pessoas, o Sefras era o único destino a que recorriam. “Se nós fechássemos as portas, onde receberiam algum tipo de apoio? Ponderamos que era um risco para nós, mas o risco seria maior ainda para aqueles que o pouco que tinham seria inviabilizado. Então, decidimos ficar com as portas abertas”, explicou Frei José, lembrando a criação da Tenda no Largo São Francisco e de um refeitório na Baixada do Glicério para atender pessoas, inclusive muitas crianças, que não tinham acesso a nenhuma comida. “Para se proteger, essas pessoas não circulam pela cidade, mas ficam em seus territórios”, explicou.
Segundo dados do Censo da População em Situação de Rua da prefeitura de São Paulo, nos últimos 2 anos, a população em situação de rua na capital paulista subiu 31%. De acordo com o levantamento, 31.884 pessoas vivem nas ruas da cidade atualmente, sendo em 2019 eram 24.344. No Rio de Janeiro, fala-se num número de 7 mil. Para Frei José, acredita-se que esses números não refletem a realidade e em São Paulo estariam em 40 mil.
“Chá do Padre” carioca
O sonho de estar presente no Rio de Janeiro é antigo, diz Frei José. “A gente sempre sonhou em dar a mesma visibilidade que tem a ação social em São Paulo no Rio de Janeiro, tendo em vista que a nossa presença no Rio de Janeiro é tão longeva como a cidade. Só que os frades são vistos, no Rio de Janeiro, mais no atendimento espiritual ligado ao Convento Santo Antônio, que também tem o socorro aos pobres, mas não de forma planejada como a gente tem hoje”, observou Frei José.
Com a pandemia, os frades puderam iniciar essa presença no Rio até agora, em parceria com o Convento Santo Antônio, onde se pôde improvisar uma cozinha e distribuir comida na praça. “Mesmo com todos os conflitos e dificuldades, a gente não interrompeu esse atendimento até hoje porque a demanda não nos deu trégua”, diz o frade, lembrando que no início eram distribuídas 200 refeições e hoje chega-se a 400. “E não distribuímos mais porque não temos condições físicas nem financeiras. Mas eu penso que se a gente consegue, com essa campanha que estamos lançando no Rio, ter o espaço físico adequado para atender essa população que já estamos acolhendo e outras tantas que recorrem a nós, vamos realizar esse sonho”, acredita o frade, que desde 2009 está a serviço desse trabalho social na Província Franciscana da Imaculada Conceição.
Para Frei José, o atendimento básico das pessoas, como água potável, alimentação, banho, é muito recorrente em qualquer lugar com a população de rua. “O trabalho social tem outros desafios também e a gente pretende fazer no Rio um trabalho de acordo com a realidade dali”, avalia, citando que a região central do Rio de Janeiro, o grande centro histórico da cidade, não tem esse atendimento sendo feito. “Então, se nós abrirmos a porta, as pessoas vêm. O único trabalho que tem na região dos arcos da Lapa é o das Irmãs Filhas da Madre Teresa de Calcutá, que distribuem lá de 250 a 300 refeições no jantar. Nós distribuímos no almoço as refeições. Só que todo dia temos que distribuir senhas, porque nós não temos comida para o tamanho da fila. Uma média de 100 a 150 pessoas ficam sem almoço porque não temos estrutura para fazer”, lamenta. Apenas a Tenda Rio serviu 134.400 refeições entre 2020 e 2021 e doou 48.217 cestas básicas.
A Campanha “Cidade Maravilhosa para Todos – Doe R$ 1”, objetivamente, tem a finalidade de comprar um prédio que dê condições de fazer a estruturação dos serviços como é feita em São paulo. “Montar uma cozinha industrial, refeitório, sanitários e chuveiros é um investimento muito alto. Para fazer investimento deste tamanho num prédio que não é nosso, chega a ser temerário porque o custo estaria em 1 milhão de reais. O Chá do Padre de São Paulo foi reformado em três anos: 2014, 2015 e 2016. Foram investidos ali só em tijolos e tinta 1 milhão e 200 reais. E olha que eu dou uma de engenheiro, arquiteto, pego o martelo e vou lá com a empreiteira. Por isso, nosso sonho é comprar uma casa. Agora, para comprar o prédio vai mais 1 milhão e pouco. Com o trabalho da Tenda do Rio, só com comida, estamos gastando em torno de 60 a 70 mil por mês. Agora, o Chá do Padre, a percapita é 7,58 reais/dia, com comida e tudo. O cardápio tem arroz, feijão, legumes, verdura e proteína, E não é salsicha”, informou.
O serviço, como o Chá do Padre de São Paulo, funcionará de domingo a domingo e, para além do fornecimento de refeições e banhos, ainda contará com: acolhimento e articulação com a rede pública para encaminhamentos; atividades socioeducativas para inserção social e econômica; e reinserção familiar. Com o novo serviço, busca-se realizar 30 mil atendimentos por mês, sendo mil atendimentos todos os dias.
“Chá do Padre” de São Paulo
O chá do Padre, historicamente, nasce na Rua Riachuelo, uma rua que os frades, desde os primórdios, atendiam os mais necessitados, com o Pão dos Pobres ou o Pão de Santo Antônio. “Como serviço do Sefras, até 2015 recebíamos ali 250 a 300 pessoas para o chá e o espaço, que era um teatro, tinha uma situação muito precária de conservação. E nós começamos a perceber que a demanda já era grande em 2015. Foi então que apareceu a possibilidade de instalar, através da Prefeitura, refeitórios para a população de rua. Fizemos um projeto de recuperação do espaço e ganhamos também mais espaços da Fraternidade do Convento São Francisco, que cedeu uma sala ao lado da padaria, na garagem, onde montamos uma cozinha industrial, o quintal atrás do convento, que era totalmente sem uso naquele momento e a gente montou lá depósitos. Também a antiga hospedaria, que ficava no térreo ao lado do teatro, também foi anexada ao Sefras como espaço de atendimento. Então, nós ampliamos significativamente a área. Nessa reforma foi construída uma cozinha industrial, para servir 300 refeições, foram montados 15 chuveiros com banhos quentes e reformados todos os sanitários”, explicou Frei José.
“Com isso, a gente ampliou o atendimento do Chá, que em 2015 passou de 250 para 300 chás, além de 300 refeições. Com a pandemia, agora que passou o auge, mais ou menos estável, lá no chá estamos atendendo em média de 1.000 pessoas por dia, com serviços diversos, desde apoio psicológico, serviço social, atividade sócio-educativa com os educadores, além de uma parceria com a Defensoria Pública. Os defensores públicos atendem lá com a gente, dando esse suporte jurídico. A grande maioria das pessoas recorre a serviços básicos, como água potável, sanitários, banho, alimentação etc”.
Referência no Centro de São Paulo
“Quando nós organizamos o trabalho, ele se chamava ‘Centro Franciscano de Reinserção Social’, um nome técnico e pouco carismático. E ali passou a ser um local de proteção das pessoas. Quando disse que não podíamos fechar as portas na pandemia, também quis dizer que as pessoas não recorrem ao nosso espaço só para acessar esses serviços básicos de dignidade humana. Eles sentem que é um ambiente seguro, onde podem recorrer para chorar as suas dores, as sus tristezas e também se protegemem das violências que sofrem em outras locais da cidade. O ‘Chá do Padre’ é um centro de referência para a população de rua na cidade de Sao Paulo. Ele nasceu, evoluiu e se tornou esse espaço. E foram eles que, carinhosamente, referiam-se ao espaço como o ‘Chá do Padre.’ Foram eles que deram o nome e o nome ficou, porque expressa de fato aquilo que eles experimentam na rua e nessa relação conosco. A rua Riachuelo é histórica e chamada Ladeira da Misericórdia, espaço de atendimento aos pobres e hoje mais do que nunca. É um refeitório forte, mas não só porque a gente acolhe as pessoas na sua integridade. É um trabalho de porta aberta. As pessoas não são fichadas, cadastradas, para acessar os serviços básicos. É claro que existe um acompanhamento para serviços como apoio jurídico, psicológico etc. Para essas pessoas, a gente tem no banco de dados e planos de acompanhamento. Mas para a grande maioria, a gente não tem essas burocracias. E graças a Deus a gente tem uma experiência positiva e, nesses anos todos, nunca se usou da força para impor controle ou impor respeito. O próprio São Francisco é a maior autoridade ali. Quando alguém faz algazarra, o outro diz que ali é para ter respeito porque é a casa de São Francisco”, conclui Frei José.
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Matéria por Moacir Beggo
Fonte: www.franciscanos.org.br