Na Quaresma, a liturgia relaciona a caminhada de Israel com a nossa salvação pela fé em Cristo, professada no batismo. O episódio narrado hoje, à primeira vista, não parece ilustrar o evangelho (cuja prefiguração veterotestamentária se encontra em Nm 21). Contudo, ao bom observador, a liturgia de hoje aparece atravessada por um fio homogêneo: a passagem da morte à vida, das trevas à luz, do pecado à reconciliação. Israel estava morto: a terra e a cidade destruídas, o povo exilado. Mas Deus o fez reviver, levando-o de volta. E isso, sem mérito da parte de Israel, mas pelo intermédio de um pagão, o rei Ciro (1ª leitura), que se apresenta como encarregado de Javé para realizar essa obra (2Cr 36,23; cf. Is 44,24-45,13). Na mesma linha, a 2ª leitura fala de nossa revivificação com Cristo, terminologia batismal (cf. Rm 6,3 etc.). Acentua fortemente a gratuidade do agir de Deus. Não foi por nossos méritos (Ef 2,8-9), mas porque Deus o quis, em sua grande misericórdia (2,4-5). O que não quer dizer que não precisamos fazer nada. Não somos salvos pelas obras, mas para as obras: para as obras boas que Deus nos preparou em sua eterna providência (2,10).
Por que não nos salvam nossas obras? Porque nosso relacionamento com Deus não é comercial, mas vital. Como poderíamos restituir àquele de quem recebemos a própria vida? A única maneira de reconciliação é: aceitar. Aceitar a nova vida que nos é oferecida, nossa nova “realização”, numa práxis que vem de Deus mesmo e que nós assumimos em união com Cristo, seu grande dom.
Também o evangelho fala de nossas obras e da bondade de Deus, gratuita e radical, pois dá seu próprio filho por nós (cf. 2° dom. Quar.). Descreve a reação dos homens, na sua práxis, diante da irrupção da oferta de Deus: Jesus Cristo e sua mensagem. O homem pode expor a práxis de sua vida à luz dessa oferta, e então sua práxis será transformada. Ou pode, auto-suficiente, fugir dessa nova iluminação, porque suas obras não agüentam a luz do dia. Portanto – e aqui Jo se torna muito esclarecedor para nossa problemática atual -, a razão por que alguém aceita ou rejeita Jesus não é tanto uma razão intelectual, mas a práxis que ele está vivendo. Quem “faz a verdade” (3,21) aceita a luz do Cristo.
Para Jo, o julgamento acontece na rejeição de Cristo, enviado do Pai; e isso, desde já; como também a salvação existe, desde já, na sua aceitação (3,18). Ora, esta rejeição ou aceitação acontece na práxis.
Nisto está uma mensagem importante para nossa “subida” à festa pascal em espírito – de conversão (cf. canto da comunhão; oração do dia). Não bastará proclamar na noite pascal o Credo, o compromisso da fé. A proclamação deve ser a confirmação daquilo – que já estamos vivendo e praticando. Desde já, esta Quaresma nos deve levar a uma nova práxis. Dai ser necessário participar da Campanha da Fraternidade e de práticas semelhantes, que nos levem a viver, com convicção, na luz projetada pelo Filho de Deus, morto na cruz por nós. Não só austera abnegação, mas positiva e alegre doação aos necessitados. Não que nossa práxis nos salvasse. Mas é preciso que façamos algo, para que se encarne o que Deus quer para conosco: um amor em atos e verdade (1Jo 3,18).
Não são as nossas obras que nos salvam. Quem nos salva é Deus. Mas nossas obras encarnam sua salvação.
Do livro “Liturgia Dominical”, de Johan Konings, SJ, Editora Vozes