Irmã Lua e as Estrelas

“Louvado sejas, meu Senhor,

pela irmã lua e pelas estrelas, no céu

as formaste claras e preciosas e belas”

Com essa estrofe do Cântico das Criaturas somos convidados a refletir sobre virtudes e valores fundamentais sob três aspectos: transparência nas relações, autoestima e o reconhecimento da dignidade do outro.

O tema proposto é inspirador, mas apresenta um desafio considerável para um redator inexperiente. Antecipadamente, é bom dizer que o leitor precisa soltar a imaginação para ir além dos rudimentos que abaixo seguem.

A motivação de São Francisco

Para compreender a profunda motivação de São Francisco ao louvar o Criador por meio de suas criaturas, é interessante considerar as qualidades que ele atribui à irmã Lua e às Estrelas, descrevendo-as como “claras, preciosas e belas”. As qualidades vêm de uma questão anterior que precisa ser compreendida. É preciso voltar um pouco atrás, meio ao estilo do que disse certa vez um antigo professor de filosofia: “Para fazer um salto de distância, o atleta não vai logo para frente, mas para trás, a fim de fazer uma corrida e pegar impulso”. Voltar a outros textos de São Francisco, anteriores ao Cântico das Criaturas, ajuda-nos a compreender as motivações dele ao compor o Cântico.  Uma das qualidades motivacionais que levaram São Francisco a prorromper num cântico de louvor das criaturas pode ser encontrada na Carta enviada a toda a Ordem: “Onipotente, eterno, justo e misericordioso Deus, dai-nos a nós, míseros, por causa de vós fazer o que sabemos que quereis e sempre querer o que vos agrada, para que, interiormente purificados, interiormente iluminados e abrasados pelo fogo do Espírito Santo, possamos seguir os passos de vosso dileto Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo” (Ord 50-51). Essa percepção iluminada e abrasada pelo Espírito Santo pode ser entendida como um reflexo de sua experiência de Deus, na qual e, a partir da qual, ele percebe reflexos do Criador na beleza das criaturas.

Transparência nas relações

“(…) seu guardião, que também era seu companheiro, adquirindo uma pele de raposa e levando-a até ele, disse: ‘Pai, padeces a enfermidade do baço e do estômago. Suplico a tua caridade no Senhor que debaixo da túnica permitas que seja costurada esta pele. Se não a queres toda, pelo menos permite que se aplique sobre o estômago’. Respondeu-lhe o bem-aventurado Francisco: ‘Se queres que eu permita isso sob minha túnica, manda que me seja aplicado exteriormente um remendo da mesma medida, o qual, costurado por fora, indique aos homens a pele escondida interiormente’” (2Cel 130).

Uma das virtudes de Francisco que brotam da experiência da grandeza e bondade do Criador é a transparência nas relações com os irmãos. Transparência no sentido de fidelidade à verdade fundamentada nos valores do Evangelho. Mas, a verdade revestida de caridade, porque ele é cortês e reverencial. Vejamos o que ele diz numa de suas admoestações: “Bem-aventurado o servo que tanto ama e respeita seu irmão quando [este] estiver longe dele como quando estiver com ele; e não disser por trás dele aquilo que, com caridade, não pode dizer diante dele” (Ad 25). Essa transparência é respeitosa e quando diz alguma coisa é com caridade, porque vem de uma relação que deve ser amorosa. As criaturas têm traços do Criador e por isso Francisco é reverencial na relação com elas. Depois que ele fez a sua experiência de Deus como “Sumo Bem” (LD) se tornou uma nova criatura e isso qualificou o seu relacionamento com os irmãos e com todas as criaturas.

Na Regra Bulada ele institui, como norma, os mais finos modos de relacionamento, instruindo os irmãos a serem afáveis entre si, a manifestarem confiantemente as suas necessidades e a cultivarem um amor diligente maior que o de uma mãe:

“E onde quer que estiverem e se encontrarem os irmãos, mostrem-se afáveis entre si. E, com confiança, manifeste um ao outro as suas necessidades, porque,  se uma mãe ama e nutre seu filho carnal (cf. 1Ts 2,7), com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual?” (RB 6,7-9). Este amor e dedicação, até maior que o de uma mãe, vem do fato de ser um irmão espiritual, ou seja, um irmão que está na dimensão do espírito do Senhor (Ad 12). Caso o irmão não esteja nesta dimensão, Francisco também é transparente em manifestar o que pensa, e convoca o irmão à conversão. Isso transparece na Carta enviada a toda a Ordem: “Aqueles irmãos, porém, que não quiserem observar estas coisas (a Regra e os ensinamentos da Carta a toda a Ordem), não os tenho como católicos nem como meus irmãos; também não quero vê-los ou falar-lhes, enquanto não fizerem penitência” (Ord 44). Cabe ao irmão, ou irmãos, fazer penitência – entrar no processo de mudança de vida que o leva a ser um irmão espiritual (RB 6,9). Na Carta aos Fiéis, Francisco esclarece sobre a questão de fazer penitência, dizendo que “todos os que amam o Senhor de todo o coração (…) (Mc 12,30) e amam seu próximo como a si mesmos (cf. Mt 22,39), e odeiam seus corpos com os vícios e pecados, recebem o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e produzem dignos frutos de penitência: Quão bem aventurados e benditos são aqueles e aquelas ao fazerem tais coisas e nelas perseverarem, porque pousará sobre eles o Espírito do Senhor (cf. Is 11,2) e fará neles habitação e um lugar de repouso (cf. Jo 14,23)” (cf. 1Fi 1-2). Para Francisco a relação dos irmãos é uma relação que eleva a dignidade da pessoa, porque a coloca em relação com o espírito do Senhor “que é beleza, mansidão, segurança, quietude, regozijo, esperança, alegria, justiça, temperança e toda nossa riqueza até a saciedade” (cf. LD).

No cuidado dos irmãos que erram, ele também indica mais um modo de proceder: “E cuidem todos os irmãos, tanto os ministros e servos como os demais, para não se perturbarem ou se irritarem por causa do pecado ou do mal do outro, porque o demônio quer, por causa do pecado de um só, corromper a muitos; mas ajudem espiritualmente, como melhor puderem, aquele que pecou, porque não são os sadios que precisam de médico, mas os enfermos (cf. Mt 9,12; Mc 2,17)” (RnB 5,7-8). Percebe-se que a intenção dele é sempre a de recuperar o irmão com espírito de caridade.

Autoestima

“Muito eloquente, tinha o rosto alegre e o aspecto bondoso” (1Cel 83).

Alegre e eloquente, Francisco vibra com as maravilhas do Senhor manifestadas nas suas criaturas. O Cântico das Criaturas revela a sua conexão amorosa e relacional com todo o universo, porque é procedente das mãos d’Aquele que é o “Sumo Bem” (LD). Ele mesmo é parte desse universo e está embevecido do amor do Criador. Se a autoestima é a percepção e avaliação que uma pessoa tem de si mesma, e tem a ver com o valor da própria vida, algo que até o Evangelho faz alusão quando fala de amar ao próximo como a si mesmo (cf. Mt 22,39), então, Francisco é um exemplo de autoestima saudável, porque ele não busca a validação da própria vida em padrões externos ou comparações, mas no reconhecimento da interconexão com o mundo, no qual ele de rosto alegre e eloquente louva o Criador. Daí a sua recomendação: “E cuidem [os irmãos] para não se mostrar exteriormente tristes e sombriamente hipócritas; mas mostrem-se alegres no Senhor, sorridentes e convenientemente simpáticos” (RnB 7,16). Tomás de Celano diz que ele “viu uma vez um companheiro seu que apresentava um rosto desanimado e triste e, sentindo-se incomodado, disse-lhe: ‘Não convém que o servo de Deus (cf. Dn 6,20) se mostre triste e carrancudo (cf. Is 42,4) aos homens, mas se mostre sempre gracioso. Dissipa tuas ofensas em teu quarto (cf. Ecl 10,20), chora e geme diante de teu Deus (cf. Gn 6,8). Quando voltas para junto dos irmãos, tendo deposto a tristeza, conforma-te aos outros’”(2Cel 128).

Francisco exulta em Deus de forma experiencial. Isso ele deixa transparecer nas expressões que usa no Bilhete a Frei Leão: “Vós sois amor, caridade; vós sois sabedoria, vós sois humildade, vós sois paciência (Sl 70,5), vós sois beleza, vós sois mansidão, vós sois segurança, vós sois quietude, vós sois regozijo, vós sois nossa esperança e alegria, vós sois justiça, vós sois temperança, vós sois toda nossa riqueza até a saciedade” (LD). Essas grandezas de Deus plenificam a sua vida até o fim de sua de sua trajetória terrestre, quando ele, à semelhança do velho Simeão, que não teme morrer (cf. Lc 2, 29), diz: “Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã, a morte corporal” (Cnt 12). Ele tem confiança de que vai descansar em paz em comunhão com Aquele que é o “Sumo Bem”(LD).

Clara, que se denomina de “plantinha do bem-aventurado pai Francisco” (RSC 1,3), também tem uma expressão máxima de autoestima, quando diz no último instante de sua vida: “Bendito sejais Vós, Senhor, que me criastes!” (LSC 46,5).

Francisco e Clara são pessoas que souberam louvar e agradecer a Deus pelo dom da vida. Souberam, também, viver e transmitir uma cordial experiência de amor aos irmãos e a todas as criaturas. O exemplo de vida deles nos leva a pensar que o carisma franciscano deveria ser uma lição de vida para as pessoas carentes de uma saudável autoestima no mundo de hoje.

Reconhecimento da dignidade do outro  –  Contemplação do Criador nas criaturas

“Reconhece nas coisas belas aquele que é o mais Belo; todas as coisas boas (cf. Gn 1,31) lhe clamam: ‘Quem nos fez (cf. Sl 99, 3) é o Melhor’” (2Cel 165).

Como passar da contemplação da beleza e bondade do Criador à percepção de que as criaturas têm traços dessa beleza e bondade, e consequentemente, têm a sua dignidade?

Alguns dos escritos de Francisco nos ajudam a perceber que ele reconhecia a dignidade do outro por uma motivação muito profunda. Veja-se, por exemplo, o que ele diz, na Regra Bulada, a respeito do relacionamento dos irmãos entre si: “(…) se uma Mãe ama e nutre seu filho carnal (cf. 1Ts 2,7), com quanto maior diligência não deve cada um amar e nutrir a seu irmão espiritual? (RB 6,9). Para Francisco a compreensão do irmão espiritual é a dignidade mais elevada de uma criatura, porque ela é participante da filiação divina, do Deus que é espírito e só em espírito pode ser visto (cf. Ad 1,4-6).  Surge, assim, uma postura reverencial. A partir dessa compreensão o irmão espiritual, deve ser tratado com maior diligência. Essa “diligência”, entendida como: interesse, cuidado ou dedicação pelo irmão, vem expressa em alguns de seus escritos:

“Onde quer que se encontrem os irmãos, mostrem-se familiares entre si” (RB 6,8);

“E, se algum deles cair doente, os outros irmãos o devem servir, como gostariam de ser servidos”(cf. Mt 7,12)(RB 6,10);

(Aos irmãos que pecam) “Os ministros, com misericórdia lhes imponham a penitência” (RB 7,3);

“E cuidem todos os irmãos, tanto os ministros e servos como os demais, para não se perturbarem por causa do pecado ou do mal do outro, porque o demônio quer, por causa do pecado e um só, corromper a muitos; mas ajudem espiritualmente, como melhor puderem, aquele que pecou, porque não são os sadios que precisam de médico, mas os enfermos (cf. Mt 9,12; Mc 2,17)” (RnB 5,7-8);

“Nenhum irmão faça mal a outro ou diga mal dele; muito pelo contrário, através da caridade do espírito, sirvam e obedeçam uns aos outros (Gl 5,13) de boa vontade” (RnB 5,13).

É importante observar que Francisco, na sua atitude reverencial, vê com um olhar de grandeza todas as criaturas sensíveis e insensíveis (2Cel 165); desde a árvore que serve para  lenha, a vegetação da horta, a pedra, o verde das ervas, a beleza das flores, até os vermezinhos (cf. 2Cel 165). A todos e a tudo ele acolhia e tratava bem. Tomás de Celano diz que a bondade fontal (Deus) era a origem  a partir da qual ele via a grandeza e a dignidade de todas as coisas: “Na verdade, toda aquela bondade fontal, que há de ser tudo em todos (cf. 1Cor 12,6), já se manifestava a este santo como tudo em todos (cf. 1Cor 12,6)” (2Cel 165).

Francisco nos ajuda a perceber que no lado secreto ou manifesto de todas as criaturas e, por excelência, do ser humano, há uma gota de virtude ou dignidade que pode manifestar-se, nem que seja como aquela do ladrão no último momento de sua vida (cf. Lc 23,42).


Frei Valdir Laurentino

 

Texto e imagem: franciscanos.org

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