Quanto esplendor no rosto do Senhor!

“Muitas vezes em horas avançadas da vida, assalta-nos a tentação de achar que tudo se passou e nada se construiu, que não há verdadeiramente um fundamento. Olhamos para as nossas mãos e estão vazias, nuas e a tentação é dizer: Será que valeu a pena?”, o que é que eu escutei?”, o que é que meus olhos viram?” José Tolentino Mendonça

♦ Sempre, neste segundo domingo da Quaresma, somos convidados a subir a montanha da transfiguração de Jesus com Pedro, Tiago e João. No final de todo o retiro quaresmal, vamos comemorar a Páscoa do Senhor. Na solene Vigília Pascal acenderemos o círio, luz, claridade. Páscoa é festa da luz. Jesus é beleza e luminosidade. Sua beleza mais deslumbrante manifestou-se em sua ressureição. No início de nossa caminhada quaresmal (ou na caminhada da vida) somos convidados a fazer uma pausa e subir a montanha. Antes de contemplar o semblante chagado, empoeirado, desrespeitado em sua paixão, temos, na montanha, uma prefiguração da glória do Senhor. O que ali vimos com os olhos da fé?

♦ Uma alta montanha… lugar de silêncio e propício para ouvir a voz do Senhor. A transfiguração se dá num espaço de silêncio, recolhimento, sem ruídos de dentro nem de fora, numa atmosfera de oração silenciosa. Jesus se coloca em união íntima com o Pai. Os dois se conhecem e se amam. Nesse misterioso face a face com o Pai o rosto do Filho ficou brilhante e suas vestes brancas. Um ofuscante banho de luz.

♦ Dois personagens se fazem presentes: Moisés e Elias. Moisés, aquele que falava com um Senhor como um amigo fala a um amigo. Moisés que, ao descer da montanha, tinha o rosto todo banhado de luz, da claridade do Senhor, como também se dizia de Santa Clara quando estava em oração. Elias, o homem cansado da luta, desgastado pela oposição, coloca-se à entrada da caverna e, quando a brisa suave acaricia seu rosto, ele se dá conta que era visitado pelo Senhor. Montanha, transfiguração, silêncio, oração. Oração que não é um mero balbuciar de fórmulas, mas êxtase de pobres que abraçam o Senhor. Tolentino gosta de dizer que rezar é abraçar a vida. Tempo do grande retiro quaresmal: tempo de oração com a porta do quarto fechada.

♦ Pedro exprime um desejo: “É bom estarmos aqui… vamos fazer três tendas e eternizar esse momento, estancar o tempo”. Experiência jubilosa de uma proximidade de Deus. O invisível como que se tornava palpável. Pode acontecer que muitas pessoas foram se desvencilhando de seus pequenos interesses e desobstruindo as portas de seu interior, de sua intimidade e venham a ter certeza da proximidade do Senhor. A quaresma não seria um tempo para vivenciarmos uma oração sem pressa, num simples estar com o Senhor, no silêncio?

♦ Quando Pedro ainda falava “apareceu uma nuvem que os cobriu com sua sombra. Presença do Senhor. Os discípulos ficaram com medo de entrar na nuvem. Quando Deus nos cerca e nos coloca contra a parede, quando sua voz atinge o mistério mais profundo de nós mesmos, tudo pode ser diferente. Temos receio de lançarmo-nos de corpo inteiro na louca aventura da fé. A claridade de Deus nos ofusca e temos medo de não suportar. Ele nos seduz, mas temos medo de sermos seduzidos. Ora, vivemos nesse mundo para habilitar-nos a viver na Claridade. Ela será nossa pátria.

♦ “Este é meu filho amado no qual eu pus todo o meu agrado, escutai-o”. No coração da Quaresma, no alto da montanha, em clima de recolhimento e silêncio somos convidados a abrir nossa intimidade à audição do Filho amado. Escutar é mais do que acolher sons que chegam ao nosso aparelho auditivo. Trata-se de dar hospitalidade ao Mistério de Deus que se avizinha. E tirar todas as consequências.

♦ Aqui se insere todo o capítulo do seguimento de Jesus, do aprendizado de ser discípulo. Temos convicção de que não podemos viver apenas de uma fé infantil, não trabalhada, não assumida pessoalmente. Estamos convencidos de que precisamos ser discípulos. Bom seria se pudéssemos viver numa comunidade de pessoas sinceras e transparentes e respirarmos o mesmo ar de busca sem pieguices e infantilismos.

♦ “Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do homem enha ressuscitado dos mortos”. Jesus não que os privilegiados discípulos divulguem o que experenciaram. Aquele não passava de um momento. Haveria uma outra montanha: Gólgota, Calvário, Crâneo. Esse Jesus haveria de lá estar pregado ao madeiro, desfigurado, sem beleza, as pessoas virando o rosto ao verem tanta feiura. Tudo vai terminar na entrega: “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”.

♦ “Mais do que nunca devemos atender ao apelo evangélico: Este é o meu Filho amado, de quem me agrado. Escutar”. Devemos parar, fazer silêncio e escutar mais a Deus revelado em Jesus Cristo. Esta escuta interior ajuda a viver a verdade, a saborear a vida em suas raízes, e não esbanja-la de qualquer maneira, a não passar superficialmente diante do essencial. Escutando a Deus encarnado em Jesus descobrimos nossa pequenez e pobreza, mas também nossa grandeza de seres amados infinitamente por Ele (Pagola, Mateus, p. 217).

♦ Escutar o Senhor é nascer para um mundo novo…


Texto para meditação

Ouvir o silêncio

Diria isto: por vezes o que nos aproxima da autenticidade é o continuar, por vezes o parar. E só o saberemos no exercício paciente e inacabado da escuta. Mas esta audição de nós mesmos não se faz sem coragem e sem esvaziamento, E não podemos estar à espera de condições ideais. Acredito naquilo que o músico John Cage deixou escrito: em nenhuma parte do espaço ou do tempo existe isso que, de forma idealizada, nós chamamos de silêncio. À nossa volta tudo é som, por muito que tentemos encontrar um silêncio. E do mesmo modo se expressou Kafka, falando de sua trincheira, a literatura: “Nunca conseguimos estar o suficientemente sozinhos quando escrevemos, até mesmo a noite nunca é noite nunca é noite o suficiente”. Aquilo que chamamos de silêncio só se torna real e efetivo através de um processo de despojamento interior, e de nenhuma outra maneira”.
José Tolentino Mendonça – A mística do instante, Paulinas, p. 118


Para rezar

Desfigurações e transfigurações
Rostos desfigurados:
doentes se contorcendo no leito do sofrimentos,
migrantes sacudidos pelas turbulências vida,
meninos e meninas sofrendo abuso sexual,
crianças que perderam os pais na guerra d tráfico,
farrapos humanos encontrados mortos depois de um sequestro.

Rostos transfigurados:
pessoas em oração,
religiosa idosa sentada no quintal olhando as borboletas,
gente com rosto bonito visitando os abandonados,
pessoas livres de si mesmas.

Frei Almir Guimarães

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