Final do outono: o belo e o desconforto producente da incompletude

Estamos na última semana do outono, que teve início em 20 de março e terminará no próximo sábado, 20 de junho. O outono é um período de transição e situa-se entre o verão e o inverno, com pouca chuva, temperatura mais baixa, folhas que caem e colorido diferenciado. A pandemia da Covid-19 atravessou todo o nosso período outonal, causando milhares de mortes, dor, luto, sofrimento, preocupação, incertezas, medo… Bastante significativo é poder, este ano, celebrar a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus no penúltimo dia do outono, fechando essa bela e triste estação, com o Amor de Jesus que transborda e jorra de seu Coração e Lado aberto na Cruz. Trata-se do mesmo Amor que nos acompanhou nesse dramático período e nos acompanhará até o fim, seja qual for a situação pessoal, social e global. Como é bom sentirmo-nos abrigados no Sagrado e “Sangrado” Coração de Jesus. Coração aberto que a todos acolhe. Coração que acalma e que tem poder de fazer o nosso coração cada vez mais semelhante ao Dele. Coração que pode transformar o nosso coração, tantas vezes petrificado, em coração de carne (cf. Ez 36,26), mais humano, misericordioso e acolhedor. Precisamos estar vigilantes, sobretudo em situação adversa, para não arrefecer o nosso coração, como nos alertou Jesus: “A iniqüidade (maldade) se espalhará tanto que o amor de muitos esfriará. Quem, porém, perseverar até o fim, esse será salvo” (Mt 24,12-13).

Gratidão também é poder celebrar o Imaculado Coração de Maria, no último dia do outono e o primeiro do inverno, no sábado, dia 20. Quantos sinais do Amor de Deus e de sua Presença-Presente para encerrar uma estação e prosseguir com teimosa esperança nas outras, na alegre e difícil peregrinação temporal rumo à Casa do Pai. Sempre utilizamos a expressão “coração de mãe” para se referir ao amor materno e à bondade das pessoas. Nosso Deus tem Coração! Nossa Mãe Maior tem um Coração Imaculado, que não conheceu o pecado e o mal. Por isso, além de nos abrigarmos e “sossegar” nosso ser no Colo de Maria, queremos pedir ao Bom Deus, por intercessão dela, que o nosso Coração seja purificado, com a eliminação das obstruções do desamor e sentimentos negativos que maculam o nosso coração, feito para amar, servir e fazer o bem: “e Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1, 31). Ter um “coração de mãe” é um imperativo para todo o ser humano. Na confiança filial e na prática do amor podemos rezar com o Salmista: “Fiz calar e sossegar a minha alma; ela está em grande paz dentro de mim, como a criança bem tranquila, amamentada no regaço acolhedor de sua mãe” (Sl 130,2).

Não obstante tanta dor e incertezas, acompanhadas de um desconforto oriundo do nosso “conforto” e situação “privilegiada”, quando comparada à realidade de tantos irmãos e irmãs, pois “o custo da desigualdade são os sofrimentos individuais e a infelicidade coletiva” (C. Volpato), o Criador nos presenteou durante o outono com momentos que favoreceram a contemplação e aliviaram um pouco a dor dos corações compassíveis e empáticos. Como não recordar os esplêndidos crepúsculos, captados não por acaso pela nossa visão, acolhidos com gratidão outonal ao Criador e registrados em nossas fotografias internas e digitais? Como não pedir com insistência renovada, diante de tanta beleza, como o fizeram os discípulos de Emaús naquele entardecer pascal: “Fica conosco Senhor, pois já é tarde e a noite vem chegando”? De fato, no outono, os dias ficam mais curtos e o anoitecer chega mais cedo. Algumas noites da existência são mais escuras e difíceis, mesmo quando iluminadas pela fé pascal e pela irmã lua. Contudo, emerge a certeza: “E a luz brilha nas trevas e as trevas não a dominaram” (Jo 1,5). Por essa razão, nos ensina o Papa Francisco ao refletir Gênesis 32,23-33: “Todos nós temos um encontro marcado com Deus de noite, na noite da nossa vida, nas muitas noites da nossa vida: momentos escuros, momentos de pecado, momentos de desorientação. Há ali um encontro com Deus, sempre. Ele nos surpreenderá quando menos esperamos, quando nos encontramos verdadeiramente sozinhos. Nessa mesma noite, lutando contra o desconhecido, tomaremos consciência de que somos apenas pobres homens – ouso dizer ‘infelizes’ – mas, precisamente nessa altura, quando nos sentirmos “pobres homens”, não deveremos recear: porque, nesse preciso momento, Deus nos dará um novo nome, que contém o sentido de toda a nossa vida; Ele mudará os nossos corações e nos dará a bênção reservada para aqueles que se deixam transformar por Ele. Este é um bom convite para nos deixarmos transformar por Deus. Ele sabe como fazer, porque conhece cada um de nós. ‘Senhor, tu conheces-me’, todos nós o podemos dizer. ‘Senhor, tu conheces-me. Transforma-me’”.

Ainda que as temperaturas tenham sido mais amenas no outono e com alguns dias de frio, o calor das emoções negativas, infelizmente, não deu trégua. O clima continuou “quente” em muitos setores da sociedade brasileira. A noite insiste sempre! Também os males da estupidez, do ódio e da indiferença. “Cessem os discursos e falem as obras” (Santo Antonio). Será que o inverno iminente será capaz de resfriar os ânimos apenas, jamais o coração? Seria possível transformar o inverno-estação e o “inverno” que insiste habitar em nós, em tempo de frutos e flores? Recordemos que os ipês florescem no inverno! Não é possível antecipar a primavera, mas plausível transformar os “invernos” em primavera do novo ser humano. Não haverá novo normal adequado sem um novo humano! Na Itália se diz que “sotto la neve c’è il pane”(sob a neve tem pão), ou seja, após a neve chegam os frutos. O inverno pode ser fecundo, belo e transformador! Urge arrefecer as emoções e atitudes negativas para brotar amor e pão!

Voltemos ao outono, com os olhos fixos em nós mesmos, bem como no belo, no bom e no verdadeiro. Assim escreve o grande educador e poeta Rubem Alves: “O crepúsculo e o outono nos fazem retornar à nossa verdade. Dizem o que somos. São metáforas de nós mesmos, eles nos fazem lembrar que somos seres crepusculares, outonais”. Somos inquietos e incompletos e com enorme desejo de completude e plenitude que só alcançaremos junto de Deus, na Vida Eterna. Quanto mais nos aproximamos de Deus, tanto mais percebemos que ainda temos um longo caminho de conversão e santificação, como nos ensinam os santos e santas. A vivência da fé madura e orante nos “incompleta” para “completar” novamente. Também o pôr do sol nos incompleta positivamente ao questionar a enganadora sensação de nos sentirmos completos. Na verdade, tudo aquilo que nos incompleta, nos esvazia, favorece a busca e o desejo de completude autenticamente humana. Como posso evoluir se já me considero completo e acabado? Quanto maior for a nossa consciência da incompletude, tanto maior será a nossa busca por completude na Plenitude de Deus. Neste outono, especificamente por conta da pandemia e risco, tivemos tempo para pensar em nossa finitude terrena, na fragilidade humana e na irmã morte, à luz, é claro, da Páscoa, que celebramos também nesse outono. Não nascemos para morrer, mas morremos para ressuscitar! A vida humana, embora temporalmente incompleta, participará da Plenitude de Cristo. Quanto maior o desejo de plenitude, tanto maior deve ser a humildade, a consciência dos limites e fragilidades, do desconforto existencial e da “inquietação” agostiniana que nos coloca em movimento, em direção a Deus e, consequentemente, ao próximo. Precisamos pensar na finitude para valorizar melhor a nossa vida e a vida dos irmãos e irmãs, especialmente os mais vulneráveis e necessitados. As constantes imagens de dor, morte e sepultamentos que traspassam a alma, deveriam mobilizar em nós um maior desejo de afirmar a vida e de lutar para que todos tenham vida e vida com dignidade, em abundância (cf. Jo 10,10). A dor produz compaixão, desconforto e indignação porque muitas dessas mortes certamente poderiam ter sido evitadas, se tivéssemos nos preparado melhor para essa pandemia e se colocássemos o foco naquilo que realmente importa: a vida. “A Glória de Deus é a vida do homem” (S. Irineu). A Trindade Santa, Perfeita Comunidade, que celebramos faz pouco, é o Caminho para tornar a comunidade humana mais humana, solidária, fraterna e justa. Toda vida é sagrada e inviolável! A Igreja nos ensina e nos convida a amar e cuidar de “todo homem e do homem todo”, defendendo a vida, como dom e compromisso, enquanto podemos e conseguimos respirar. “O outro que sofre nos pertence” (S. João Paulo II).

Em tempos de dor e morte, precisamos cultivar a esperança: “Sabedoria é isto: contemplar o abismo, sem ser destruído por ele” (Rubem Alves). Diante da dor, causada pela injustiça, desigualdade e descaso, cabem a fé e a resiliência, jamais o esquecimento ou silêncio letal.

Seguimos com Rubem Alves: “No verão o excesso de luz ofusca as cores. No outono a luz fica mais mansa e as cores desabrocham como flores. O Verão é inquieto. Tudo nele nos convida a sair e a agir. O outono é tranquilo, introspectivo, convida ao recolhimento e à meditação. É um convite ao pensamento”. De fato, durante a pandemia e tantos acontecimentos, não nos faltou tempo, neste outono, ainda que intranquilo, para pensar e avaliar nossos atos e modo de vida, à luz do Evangelho. Como não pensar e rezar diante de um crepúsculo outonal? Se o crepúsculo é o intervalo entre o dia e a noite, a aurora, segundo o belíssimo texto de S. Gregório Magno, é o intervalo entre a noite e a luz. Em ambos está presente a luz do sol. Somos “sal da terra e luz do mundo”, mas também crepúsculo e aurora, guiados e inundados permanentemente pela Luz de Cristo, enquanto caminhamos para aquele “dia sem ocaso” no qual “não haverá mais noite, não mais se precisará da luz do sol, porque o Senhor Deus vai iluminá-los e viverão pelos séculos dos séculos” (Ap 22,5). “A madrugada ou aurora é o tempo da passagem das trevas para a luz. A aurora e a madrugada anunciam ter passado a noite, no entanto, ainda não mostram toda a claridade do dia: repelem aquela, acolhem este, e, enquanto isto, as trevas e a luz se misturam. Quem somos nós nesta vida, nós que seguimos a verdade, a não ser aurora ou madrugada? Já havendo realizado algo que pertence à luz, no entanto, ainda não nos libertamos inteiramente das trevas. Pelo Profeta foi dito a Deus: Diante de ti, nenhum vivente é justo. E em outro lugar: Em muitas coisas falhamos todos. Por isto, quando Paulo diz: Passou a noite; não acrescenta logo: Chegou o dia, mas: O dia se aproximou. Ao dizer que, passada a noite, o dia não veio, mas se aproximou, demonstra, sem qualquer dúvida, estar ainda na aurora, depois das trevas e antes do sol. Qual é então o lugar da aurora, a não ser a perfeita claridade da visão eterna? Quando, conduzida, lá chegar, nada mais lhe restará das trevas da noite. A aurora apressa-se em alcançar seu lugar, no testemunho do Salmista: ‘Minha alma tem sede do Deus vivo; quando irei e aparecerei diante da face de Deus? ’” (São GregórioMagno). Busquemos a verdadeira Luz, que é Cristo, o Sol da Justiça e “sirvamos ao Senhor em santidade e em justiça, enquanto perdurarem nossos dias” (Lc 1,75).

O pôr do sol é belo justamente por carregar um pouco de tristeza. Trata-se da “elegante melancolia do crepúsculo” (C. Chaplin). E uma tristeza que tem potencialidade de se transformar em beleza e alegria, em aurora e luz. Trata-se de uma ambivalência natural e existencial, uma coexistência de sentimentos antagônicos que fazem emergir a nossa incompletude para completar com o que realmente completa e importa. Isso implica ter a sabedoria de que, na travessia da existência, estamos constantemente como aprendizes e “na vida somos eternos amadores, pois vivemos pouco para sermos mais do que isso” (C. Chaplin). À luz da fé cristã, podemos sintetizar a ambivalência com duas frases, uma chamada “mantra” e a outra de Santo Agostinho, respectivamente: “Indo e vindo, trevas e luz, tudo é Graça, Deus nos conduz”; “Fizeste-nos para ti Senhor, inquieto estará o nosso coração enquanto não repousar em ti”. A consciência de que somos incompletos e o humilde desejo de completude, que busca constantemente passar da noite para a aurora e da aurora para a luz, do outono para o inverno e do inverno para a primavera, nos permite rezar com o Salmista: “Completai em mim a obra começada; ó Senhor, vossa bondade é para sempre! Eu vos peço: não deixeis inacabada esta obra que fizeram vossas mãos” (Sl 138,8). Precisamos permitir que Deus continue sua obra para ser o que podemos e devemos ser: melhores e santos.

Encerraremos o outono com a Solenidade do Sagrado e Sangrado Coração de Jesus a Memória do Imaculado Coração de Maria. Nosso Deus tem Coração! Ele é Amor! Temos uma Mãe que nos foi dada pelo próprio Jesus, na Cruz. Iniciaremos a nova estação, aquecidos pelo Amor e com o nobre desejo de vivenciar concretamente o Mandamento do Amor. Para tanto, precisamos identificar o que falta em nós. Jesus perguntou aos dois discípulos de João Batista que o seguiam: “o que procurais?” (Jo 1,38). E nós, o que procuramos? Onde procuramos? O que falta? Somente Jesus pode despertar em nós o humano desejo de completude na consciência da incompletude tocada por Ele: “Vinde a mim, todos os que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso” (Mt 11,28). É humano e compreensível o “cansaço” que experimentamos nesse dramático momento e em tantos outros: “sabemos que toda a criação, até o presente, está gemendo como que em dores de parto. E não somente ela, mas também nós”(Rm 8,22-23). Por essa razão, imploramos constantemente: “Jesus manso e humilde de Coração, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso”.

Visitando recentemente, com toda segurança, na Solenidade da Santíssima Trindade, o Mosteiro das Irmãs Carmelitas, dizia a elas que estava ali para respirar o ar da contemplação e renovar os pulmões com o puro oxigênio que lá não falta e de lá se difunde, porque aqui fora estava difícil e um pouco asfixiante. Dizia também que elas vivem em clausura por vocação e que o povo aqui fora estava confinado por medo do vírus mortal. Se no cotidiano delas quase nada mudou durante a pandemia, já no nosso, tudo mudou. Somos “obrigados” ao distanciamento por amor à vida. Elas se “distanciam” do mundo por Amor a Cristo, o único Esposo e Primeiro Amor. Elas têm o oxigênio da contemplação. Nós, o cansaço da missão e dos tempos dificílimos. Elas rezam por nós, pela Igreja e toda humanidade. Nós, com as orações delas e com as nossas, é claro, podemos receber o oxigênio de Deus, respirar melhor, contribuir para que todos também possam respirar, viver com dignidade e seguir lutando contra as persistentes desigualdades injustas, tão cruéis e mortais. Nesse mundo injusto, ao menos o ar, ainda que muitas vezes poluído, permanece democrático e acessível a todos. Nas viagens aéreas,  somos orientados, em caso de emergência, a colocar a máscara primeiramente em nós e depois nos outros. Para ajudar aos outros precisamos respirar. Respirar para cuidar e fazer respirar! Nesse caso, quanto mais respiramos o sopro vital do Amor de Deus e somos conduzidos pelo Espírito Santo, tanto mais devemos ajudar a colocar a “máscara” do oxigênio nos outros, utilizando responsavelmente máscaras e, simultaneamente, desnudando o que produz morte e asfixia.

Finalizamos com uma sábia e silenciosa senhora que foi visitar sua amiga numa clínica, e, do lado de fora, distante alguns metros, após uma troca amorosa de olhares, lhe disse com ternura e em alto e bom tom: “minha amiga, fique bem aí, mais segura, porque aqui fora o mundo está muito estranho”. Poderíamos completar: e também nossa situação dolorosa e inaceitável, pela falta de bom senso e consenso que incompleta e “mata” ainda mais. Que bom seria se a melhoria da qualidade do ar, que se constata, fosse também acompanhada da melhoria nas relações interpessoais! Que bom seria se todos e todas deixassem de “poluir” o ambiente, já tão sofrido, evitando atitudes que intoxicam e asfixiam o amor e a respeitosa convivência! Que venham os ipês, na estação do inverno! Que possamos florescer e frutificar, mesmo no inverno, que acolheremos apenas como estação, evitando teimosamente de sermos por ele acolhidos e dominados. As folhas caem no outono, mas a vida permanece; nos sentimos desnudos, embora com máscara; desprotegidos pelas incertezas, embora com teimosa esperança; desconfortáveis pelo conforto; incompletos, buscando a verdadeira completude; vivos, naquele que Vive para sempre! A Completude é oferecida aos seres incompletos que se mantêm em busca… Ó producente desconforto! Ó feliz incompletude inquietante! Que belo outono e dolorosa realidade! “Em tudo somos atribulados, mas não abatidos; postos em apuros, mas não desesperançados” (2 Cor 4,8). “Bendito seja Deus que nos consola em toda a nossa tribulação para que possamos consolar os que se acham em alguma tribulação” (2 Cor 1,4). Portanto, com

Santo Agostinho queremos iniciar a nova estação rezando: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova, tarde te amei! Eis que estavas dentro e eu, fora. Estavas comigo e eu não contigo. Seguravam- me longe de ti as coisas que não existiriam, se não existissem em ti. Chamaste, clamaste e rompeste minha surdez, brilhaste, resplandeceste e afugentaste minha cegueira. Exalaste perfume e respirei, agora anseio por ti. Provei-te, e tenho fome e sede. Tocaste-me e ardi por tua paz” (Santo Agostinho). A foto abaixo, capturada por mim, no final deste verão, pode servir como ilustração para esta reflexão finda. Vamos em frente, no olhar e respiro da fé. Florescer e frutificar no inverno é preciso e possível! Deus os abençoe. Com gratidão,

Dom Luiz Antonio Lopes Ricci
Bispo de Nova Friburgo

Share on facebook
Share on twitter
Share on telegram
Share on whatsapp
Share on email
Share on print